Não é nossa culpa
Nascemos já com uma bênção
Mas isso não é desculpa
Pela má distribuição
Com tanta riqueza por aí
Onde é que está? Cadê sua fração?
Com tanta riqueza por aí
Onde é que está? Cadê sua fração?
Até quando esperar?
(Plebe Rude)
Em 1986, a banda Plebe Rude lançou uma canção que capturava o sentimento de indignação diante da desigualdade. A música questionava a concentração de renda: apesar de "tanta riqueza por aí", onde estava a parcela que cabia a cada um? Essa mensagem ressoava em um Brasil que saía de uma ditadura militar (1964-1985) e enfrentava desafios como a inflação galopante e a necessidade de reconstrução democrática.
Quase quatro décadas depois, em um mundo transformado pelo avanço do neoliberalismo, as questões levantadas pela Plebe Rude podem estar no âmago de acontecimentos recentes. A crescente concentração de renda e o aumento das desigualdades sociais continuam a gerar frustração entre as populações ao redor do globo. A pandemia de COVID-19 expôs ainda mais essas disparidades, evidenciando como os mais ricos se tornaram ainda mais prósperos enquanto a maioria lutava para sobreviver.
Até quando esperar? Até a próxima eleição
Essa frustração tem se manifestado nas urnas, seja pela eleição de candidatos "exóticos" ou fora do establishment, seja pela sequência de derrotas de candidatos governistas em diversos países, como os recentes casos dos Estados Unidos e Uruguai. O fenômeno reflete um descontentamento generalizado com a incapacidade do sistema político de resolver problemas cotidianos da população. Embora os governos muitas vezes apresentem indicadores econômicos positivos—como superávits primários, valorização das bolsas de valores e planos grandiosos para os próximos anos—esses números não se traduzem em melhorias concretas na vida das pessoas. Assim, mesmo que a responsabilidade não seja inteiramente dos governos em exercício, eles se tornam o alvo do cansaço e da frustração dos eleitores, que votam "contra" o status quo em busca de mudança.
Discursos abstratos para problemas concretos, o que pode dar errado?
Em artigo anterior, analisei como a campanha de uma candidata progressista nos Estados Unidos falhou em captar as necessidades reais do eleitorado ao focar excessivamente em simbolismos sem oferecer soluções práticas. Essa desconexão entre discursos abstratos e a realidade dos eleitores contribuiu para a derrota nas urnas.
Fazendo uma ponte para o contexto brasileiro, recente entrevista de Fernando Haddad suscita questionamentos sobre a estratégia imaginada pelos setores progressistas. Haddad argumenta que a esquerda está devendo um "sonho" à sociedade e que, sem um horizonte utópico, as pessoas se voltam para alternativas distópicas oferecidas pela extrema direita. Ele enfatiza a necessidade de renovação teórica e ousadia para reconectar-se com a população. E corre o risco de cair na falácia que consiste em acreditar que nossas preferências políticas pessoais são automaticamente eficazes em termos eleitorais—aquilo que o escritor Matthew Yglesias chama de "falácia do comentarista".
Os setores progressistas enfrentam o desafio de alinhar seus ideais com as realidades vividas pela população. Está provado que discursos abstratos, como ideais democráticos, representatividade de determinados grupos, e promessas genéricas de um futuro melhor não são suficientes para conquistar a confiança dos eleitores. Políticas públicas eficazes devem responder às preocupações imediatas das pessoas, oferecendo soluções tangíveis que melhorem suas vidas. Não dá mais para esperar.
Os setores progressistas enfrentam o desafio urgente de alinhar suas propostas aos problemas reais da população. Está claro que discursos abstratos, como a defesa da democracia ou dos direitos de grupos específicos, não são mais suficientes para reconquistar a confiança dos eleitores. A falta de ações eficazes e de políticas públicas que respondam diretamente às preocupações diárias das pessoas os tem afastado de suas bases tradicionais. Políticas públicas eficazes devem responder às preocupações imediatas das pessoas, oferecendo soluções tangíveis que melhorem suas vidas. Não dá mais para esperar.
Referências
Sader, Cassio. “A Desconexão que Custou a Eleição: Como a Campanha de Kamala Harris Perdeu o Pulso do Eleitorado em 2024”. Linkedin https://www.linkedin.com/pulse/desconex%C3%A3o-que-custou-elei%C3%A7%C3%A3o-como-campanha-de-kamala-cassio-sader-ndrdf/?trackingId=EVx5oWy7Q5WKP8ODfXxQzw%3D%3D
'Esquerda está devendo um sonho, e palhaços de extrema direita ocupam o picadeiro', diz Haddad sobre resultado do PT nas urnas. Folha de São Paulo, 17 de outubro de 2024.